Braia traz para o "...e o mundo de cá" uma nova perspectiva para o folclore musical nacional
Confira a resenha do álbum Braia “…e o mundo de cá”, publicado pelo site COMBATE ROCK (https://combaterock.blogspot.com/2021/05/braia-traz-para-o-mundo-de-ca-uma-nova.html?m=0).
Resenha por Marcelo Moreira
O mundo encantado do heavy metal nacional já produziu algumas das mais notáveis peças dedicadas ao folclore e à história do país, só que sempre com sólida base documental e textos com profunda pesquisa. Mas um músico mineiro decidiu contar essas histórias de um outro ponto de vista utilizando o background heavy, mas enveredando por outros caminhos.
Com isso, Bruno Maia decidiu sair do mundo de lá e voltar para o mundo de cá, parafraseando os títulos das duas obras de Braia, o seu projeto solo fora do Tuatha de Danann, a banda que uniu o mundo celta irlandês à interiorana vida do sul de Minas Gerais.
O Tuatha de Danann é uma feliz aberração musical se observarmos que poderia dar errado uma galera de Varginha (MG) recriar o mundo celta e o sentimento irlandês em plena zona mineira encrustada no sopé da Serra da Mantiqueira. E lá se vão 25 anos reunindo guitarras pesadas com uileann pipes, bodhran e percussão gaélica, tudo com o tempero mineiro e brasileiro.
No meio desse tempo, em uma das paradas da banda, surgiu o Braia com “…e o mundo de lá”, com composições em português, em uma perspectiva mais intimista e acústica e abordando uma brasilidade que Maia necessitava explorar.
Foi uma experiência e tanto, mas a sua alma irlandesa falou mais forte e o Tuatha de Danann seguiu em frente, assim como outro projeto, o Kernunna, também com alma celta e gaélica.
Catorze anos depois, o Braia ressuscita com uma espécie de continuação do primeiro disco, convenientemente intitulado “…e o mundo de cá”.
A retomada ocorre em plena pandemia de covid-19 que viu o surgimento do mais recente disco do Tuatha de Danann, “In Nomine Eireann”, totalmente dedicado a canções folclóricas e políticas da Irlanda, em uma analogia à crítica situação política e social que o Brasil vive.
Pode-se dizer que o novo disco do Braia é um fruto direto da pandemia, assim como o mais recente lançamento do Tuatha tem tudo a ver com o que estamos vivendo.
Sem poder tocar por conta das restrições de shows e vendo o Roça ‘n’ Roll mais uma vez adiado por conta da disseminação do vírus e questões financeiras, o músico mineiro abriu o baú e resgatou o projeto que há anos merecia uma nova atenção. Quem disse que a pandemia não serviu para nada?
Assim como no disco de 2007, não espere por guitarras pesadas, baixos pulsantes, baterias explodindo nas orelhas e gaitas irlandesas. “…e o mundo de cá” é um cruzamento de rock rural com música regional e outros ritmos brasileiros. A mistura é muito interessante, revelando como Bruno Maia é talentoso e inquieto.
O bardo gaélico aqui dá lugar a um violeiro inspirado e a um músico curioso para buscar sonoridades distintas e diversas, explorando as possibilidades de um cancioneiro regional e das imensas possibilidades que o folclore brasileiro permite.
O resultando é muito bom, embora não seja de fácil digestão para os roqueiros mais empedernidos. Para quem está acostumado a ouvir uma MPB mais raiz, certamente vai encontrar vestígios de coisas boas, como 14 Bis, A Cor do Som, Sá & Guarabyra, Kleiton & Kledir e até Matuto Moderno, hoje a banda de maior expressão dentro do chamado rock rural, embora já tenha mais de 20 anos de existência.
O mundo encantado de Braia surpreende não tanto pela música em si, que belisca em diversas áreas, mas nas composições, emoldurando boias histórias e revelando um lado contista/cronista que Bruno Maia muitas vezes demonstrou nos discos do Tuatha de Danann.
Tudo é muito simples e básico, mas de muito bom gosto, o que torna a audição mais instigante, ainda que tenhamos em mente os trabalhos do Tuatha de Dannan. E tem também muita história, muitos fatos relevantes.
Há bastante rock, e do bom, com texturas progressivas e um violino que divide com violões e guitarras a condução de tudo, que foi uma excelente sacada.
Você sabe, por exemplo que o significa o título da música “Tumbero”? “Era como eram chamados popularmente as embarcações que traziam os escravizados da África para o Brasil”, explica Maia pacientemente.
Ele continua: “Os cativos vinham nos porões dos navios, amontoados, sem qualquer cuidado sanitário, com parca alimentação e vários morriam a bordo, por isso o nome, tumbeiros, os navios-tumba. A escravidão foi/é a maior marca constituinte da sociedade brasileira. Ela ainda existe, sob outras formas e relações de poder e convivência, mas existe. Devemos combatê-la, mesmo que seja lutando por seus locais de memória”.
Assim como muitos discos e músicas do Iron Maiden e dos alemães do Grave Digger, Tuatha e Braia são boas aulas de história.
Outra faixa importante e carregada de simbolismo é “Pai Ambrósio”, que remete à libertação dos escravos, em 1888, mas também à Revolta de Carrancas, quando muitos escravos se levantaram, nesta mesma data, em 1833, contra seus senhores.
“Este som também trata de um tema correlato, que é o Quilombo do Campo Grande, liderado pelo chefe Ambrósio, chamado por uns de rei e por outros de pai. Ambrósio foi uma das maiores lideranças quilombolas dos setecentos mineiros”, diz o músico.
Por ser uma obra instrumental, Bruno Maia transformou o encarte em um pequeno livreto com uma espécie de contextualização de cada música, com explicações históricas e informações que serviram de inspiração para os temas.
A abertura do disco, “Sabarabuçu Set”, é um verdadeiro encontro entre as profundezas da Irlanda e o interior do Minas Gerais, com a flauta de Maia duelando com os violinos de Kane O’Rourke e Daiane Mazza. O resultado é surpreendente.
O folk irlandês e o rock progressivo se misturam com o cancioneiro regional nas ótimas “Capão da Traição” e “Trem do Rio”. As mineirices surgem com força em “Diadorina” e “Puizé Celta, Uai”, em que violões e flautas são grande destaque, passeando pela imaginação da música brasileira de força instigante.
Meio de que duelando com o baião e as modas caipiras temos jazz dos bons, com improvisações que surpreendem em temas como “Um Besouro na Esquina” e “Quebranto Catanguá”, que se destacam pela melodia fácil e saborosa temperada por levadas de baixo que soam muito bem.
A volta do projeto Braia é uma notícia muito boa nestes tempos difíceis, em que a valorização da música instrumental é um item em falta no mercado depredado brasileiro.
Braia está recheado de músicas que reacendem esperanças e transformam o humor das pessoas, espantando o tédio e inspirando o nosso cotidiano. Está bem difícil parar de escutar este álbum.
Link da publicação da resenha: https://combaterock.blogspot.com/2021/05/braia-traz-para-o-mundo-de-ca-uma-nova.html?m=0